Faz hoje um mês que faleceu no hospital de
Évora Joaquim Maria Palminha Silva. No dia seguinte, debaixo dum sol
esplêndido e frio, foi a sepultar no cemitério dos Remédios, na entrada
ocidental da cidade, essa mesma que ele tantas vezes visitava à procura
das marcas próximas da sua infância. Antes houve missa de corpo presente
numa daquelas igrejas soturnas e barrocas da cidade, tão sombrias e
desoladas, a de São Tiago, com uma homilia aceitável para um homem que,
não recusando o evangelho que recebera na infância, castigava com o riso
a dogmática da Igreja. O ponto emocionante foi porém o instante em que
dois familiares se adiantaram para cantarem a conhecida música de
Jacques Brel, “Ne me quitte pas” em homenagem ao homem que partia para
sempre.
Joaquim Palminha Silva, nascido em Évora a 16
de Outubro de 1945, estudou nos Salesianos desta cidade, escola e
instituição à qual viria a dedicar um dos seus conscienciosos estudos
históricos, e desde cedo se mostrou um ágil publicista adverso à
situação. As suas simpatias iam então para o Partido Comunista
Português. Começou por escrever numa folha eborense, Democracia do Sul,
cuja história está ainda por fazer, mas logo passou aos jornais
lisboninos assinando artigos e notas nas páginas do Diário de Lisboa e
do República, onde conheceu Francisco Quintal, com quem mais tarde fará
amizade próxima. Incorporado no exército em 1966 e mobilizado para a
Guiné em 1967, Palminha Silva opta por desertar, entrando em ruptura
indefectível com o Partido, cuja política era contrária à deserção.
Sem apoio político, sem papéis, isolado e
procurado pelas autoridades militares e civis, vive cerca de meio ano
clandestino numa pensão pobre do Bairro Alto, até que em Junho de 1968
consegue passar a salto para França, numa fuga inaudita que ele avaliava
a rir como o lance mais romanesco da sua vida – fértil em inenarráveis
transes rocambolescos. Em Paris, onde conviveu com João Freire, Hipólito
dos Santos, José Maria Carvalho Ferreira e tantos outros, sequioso de
acção, ingressou na LUAR, de que se tornou operacional a tempo inteiro.
Lastima-se apenas que mais tarde, nos anos de sossego que ainda gozou,
não tenha escrito o memorial desses tempos tão ricos de acção, de
encontros, de lances caricatos e aventurosos, que dariam na verve
saborosa da sua pena páginas vivíssimas e cheias de humor.
Com o golpe militar de Abril e a Revolução
dos Cravos, Palminha Silva regressa a Portugal, acabando por cumprir o
serviço militar em falta em Angola e concluindo o curso de História na
Faculdade de Letras de Lisboa. Ingressa então no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, e nessa qualidade faz várias investigações, uma dedicada à
actividade consular de Eça de Queiroz em Havana, até que transita para a
administração regional a pedido do município de Cuba, no Baixo
Alentejo, onde se dedicou ao estudo e à divulgação do escritor Fialho de
Almeida. Fundou nessa época com outros cubenses a associação cultural
“Fialho de Almeida”, que publicou dois admiráveis boletins e ainda hoje
existe por porfiados esforços da Professora Francisca Bicho.
Reformado da administração regional,
regressou à cidade natal, onde fez estudos locais invulgares, como esse
trabalho que dedicou às marcas esotéricas dos monumentos de Évora, num
livro singular, pensado e escrito ao arrepio de modas, que titulou Évora
Oculta. O seu espólio, riquíssimo de notas sobre a cidade, só
comparável ao de Túlio Espanca, foi doado há anos ao Município de Évora,
sem que este, ao que entendi, se desse sequer ao trabalho de se fazer
representar na sua despedida. Ai a gratidão humana é tão pouco exemplar!
Tive a felicidade de beneficiar ainda do
convívio e do conselho deste homem mais velho uma geração. Depois do 25
de Abril foi colaborador regular da imprensa libertária e recordo-o, de
gabão largo e palavra fácil, na década de 80 do século passado num
encontro da revista A Ideia. Um estudo seu, sobre a figura do Mafarrico
na cultura oral portuguesa, tema dilecto dele, acaba de ser publicado no
número 75/76 d’ A Ideia; pouco antes de falecer, já irremediavelmente
doente, ainda me entregou para publicação novo estudo, mais uma vez
sobre as marcas do Diabo na cultura popular, que terá sido dos últimos
que escreveu e que em sua homenagem a revista dará a lume no ano de
2016.
António Cândido Franco
Sem comentários:
Enviar um comentário