Foi numa
deslocação ao Alentejo que conheci o senhor Domingos. Conheci-o naquela tarde e
nunca mais o vi. É possível até que já tenha falecido; ele era já muito idoso
nessa altura, mas não consegui esquecê-lo e ainda hoje o vejo apoiado ao cajado,
uma manta rota sobre as costas curvadas, o rosto magro e cheio de rugas, a barba
rala e aqueles olhos encovados, muito claros, que
nos olhavam com uma expressão amiga, como se nos conhecêssemos há muito tempo e
entre nós não pudesse haver segredos.
Era pastor de uma herdade onde eu
estava de visita, devido a uma actividade profissional que exerci numa empresa
agro-pecuária como conselheiro, e foi o acaso de uma venda de gado que
proporcionou o nosso encontro. Vendedor e compradores tinham decidido ir apartar
as ovelhas para uma próxima feira e lá fui com eles ao monte, onde, próximo, o
gado andava na pastagem.
Pareceu-me que ele simpatizou logo comigo e
enquanto os outros foram tratar do negócio ficámos os dois a conversar, ele
apoiado no cajado, eu encostado num chaparro à sombra. Ao começo pouco dissemos.
Falou-se do tempo, do gado, das crias, mas a conversa parecia a cada momento
emperrar. Habituado à solidão, as palavras saiam-lhe com custo e os silêncios
prolongavam-se, sem que isso parecesse incomodá-lo, como me acontecia. Foi
precisa a chegada de um novo personagem para tudo se normalizar entre nós e eu
conhecer verdadeiramente o "tio" Domingos. Essa personagem foi o
"Piloto".
Chegou vagarosamente junto do idoso, veio depois cheirar-me e por
fim sentou-se, cabeça baixa, olhos mortiços. Vi o "tio" Domingos fazer-lhe uma
festa na cabeça e com tanta ternura foi feita a carícia que isso me
impressionou.
- Vá, amigo, descansa um bocado - disse ele, com voz
branda.
Depois tirou da sacola um grande naco de pão, perguntou-me se era
servido e, partindo-o ao meio deu a parte maior ao cão e começou a trincar o
resto.
Tudo aquilo tinha sido feito com tal simplicidade que o gesto
ficou-me nos olhos e quase me comoveu. Não que fosse extraordinária a partilha,
mas ela pareceu-me vir tocada de tanta ternura que fiquei a olhar os dois com
muita simpatia. Já não sei se naquele momento disse alguma coisa, ou se ele
adivinhou o que se passava comigo, mas os olhos brilharam-lhe de um fulgor
estranho e a expressão modificou-se-lhe.
- O senhor gosta de cães, não
gosta?... - perguntou.
Disse-lhe que sim e na cara encarquilhada de rugas
vislumbrei um sorriso de compreensão.
- Eu só gosto deste... - disse, num
encolher de ombros, onde parecia haver um desalento. - Somos companheiros há
dezoito anos...
E o "tio" Domingos começou a falar. Agora já não era nada
aquilo que ali via: o "Piloto" fora o melhor cão de pastor que conhecera. Era
vê-lo quando era novo; não havia ovelha que saísse do rebanho, nem um palmo de
terra adiante, chegava a trazê-las quase de rastos, os pelos presos ao dentes!
Sim, aquilo é que era um cão pastor, fiel! E o cuidado que ele tinha com as
crias?... Era vê-lo a defendê-las das marradas de alguma ovelha brincalhona...
não, como aquele, não havia outro!...
- Estamos velhos os dois... mas não
quero mais nenhum... - e o "tio" Domingos limpava com a manga do blusão talvez
um pingo do nariz, não sei, ou alguma lágrima indiscreta.
Eu ouvia-o, e era
comovente aquela amizade. Anos e anos, longe de tudo e de todos, o céu e a
planície sempre nos olhos, e ele e o 'Piloto' juntos, como dois companheiros que
se amparam na solidão. Mas havia uma tragédia. O "tio" Domingos sabia bem como o
pobre cão estava velho. Mais um mês, mais dois, talvez um ano, e seria o fim: a
morte. Que faria ele depois?... Não era um cão que morria, era um companheiro
que ninguém podia substituir.
- Não... o senhor não pode saber o que é... é
preciso ter vivido como eu vivi com ele... e o "tio" Domingos olhava o 'Piloto',
abanando a cabeça desalentado, um nó na garganta a impedi-lo de falar.
- Ele
compreende tudo o que digo, acredite... temos conversas longas os dois e eu sei
que ele me entende... até adivinha que estou doente... vem para o pé de mim,
lambe-me as mãos, como se estivesse a dizer-me: deixa-te estar... eu vou, eu sei
que não estás bem... fica aí, eu vou. Não. O senhor não pode compreender...
quando ele morrer, fico para aqui perdido, sem ninguém...
Foi nesse momento
que lhe vi uma lágrima deslizar pelas faces cansadas. Era Verdade. O senhor
Domingos chorava.
- Não. Quando ele se acabar, ninguém vai tomar o seu
lugar. Não quero!... Prefiro ficar sozinho...
E num gesto de cansaço, onde
havia toda aquela ternura humana que existia dentro dele, e que era grande, fez
uma festa no velho cão, que, como num mudo agradecimento, se encostou a
ele.
- Não... depois de ti, meu amigo, não quero mais nenhum... está
descansado... tu sabes que é verdade...
No rosto do "tio" Domingos havia
lágrimas ao dizer aquilo...
Nunca mais o esqueci.
Foto e história: alfobre.blogspot.pt
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