A Cruz Relicário do Santo Lenho de Évora é uma peça de ourivesaria de alto valor histórico, artístico e cultural, engastada de pedraria riquíssima, que faz parte integrante do chamado Tesouro da Sé, instalado desde Maio de 2009 no moderno Museu de Arte Sacra, contíguo à Catedral. Extremamente valiosa, suscitou entre os anos 90 do século passado a cobiça das quadrilhas internacionais de ladrões de arte sacra, que por duas vezes a tentaram roubar. Mas a estrutura sólida e maciça do velho templo gorou-lhes as intenções, ao não permitir a intrusão no seu interior. Curiosamente, a cruz relicário é mais conhecida por visitantes que pelos próprios eborenses, muitos dos quais desconhecem a sua existência ou dela ouviram falar vagamente. E vale a pena saber a sua história, mescla de crenças, tradições e fatos reais, a par da extraordinária riqueza da sua composição.
De acordo com a tradição, foi Santa Helena (Flávia Júlia Helena), mãe do Imperador Constantino I (responsável pela conversão do mundo latino ao cristianismo), quem, após aturadas pesquisas em torno do lugar onde Cristo foi supliciado e torturado, descobriu a cruz na qual o Nazareno agonizou e morreu. Desde logo manifestou a intenção de partir a cruz em duas metades, tendo uma permanecido em Jerusalém, enquanto a outra foi encaminhada para Roma. Os pequenos fragmentos resultantes da operação de separação foram remetidos para diversos pontos da cristandade, passando todos a ser genericamente designados por Vera Cruz, ou seja pertencentes à verdadeira cruz. Possuir um fragmento mínimo era, pois, a maior das relíquias, conferia honra, dignidade, solenidade e especial veneração aos locais que os detinham, dando origem ainda, por acréscimo, ao aparecimento de novos lugares de culto e comunidades de vizinhança, para promoção da devoção e do culto.
De frágil madeira para adoração, os pedaços sagrados passaram a ser guardados em relicários cravejados obrigatoriamente de metais nobres, para maior engrandecimento e glória do Senhor. Perguntar-se-á então, com alguma admiração e surpresa, como chegou a Évora uma parte do Santo Lenho. Admite-se como certo que na sétima cruzada (movimentos militares de inspiração cristã, ocorridos entre os séculos XI e XIII e destinados a libertar a Terra Santa), D. Afonso Pires Farinha, prior da Ordem do Hospital ou de Malta, na pequena vila de Marmelar (Portel), conseguiu trazer para Évora um grande fragmento da Cruz, a pedido do bispo D. Durando Pais, que entretanto refundara a Catedral, dado que a primitiva estava assente sobre uma mesquita muçulmana da qual hoje não restam vestígios. Sustenta a tradição que a mula que o transportava, ao chegar às imediações de Évora, deteve-se subitamente e fincou as patas no chão, de modo a que ninguém a conseguiu dali arrancar. Os que participaram na comitiva viram nisto um sinal divino de que a relíquia não era para ficar na cidade e levaram-na para o Mosteiro de Marmelar, direção espontaneamente tomada pelo animal.
Naquelas paragens ficou até à batalha do Salado (1340), que opôs os povos peninsulares aos mouros, os quais procuravam recuperar o território perdido quando da Reconquista Cristã. Ao tempo desse decisivo confronto reinava em Portugal Afonso IV, cuja filha Maria (a fermosíssima Maria, cantada por Luís de Camões em “Os Lusíadas”) era casada com Afonso XI de Castela, mas vivia recolhida num convento em Sevilha por não poder suportar a relação do rei com Luísa de Gusmão, sua amante e de quem viria a ter dez filhos ilegítimos. Entretanto a poderosa ofensiva muçulmana, comandada pelo rei de Fez e Marrocos com o auxílio de emir de Granada, ameaçava ocupar Castela sem que os exércitos de Afonso XI manifestassem grande capacidade de combate. Em face disto, o rei de Castela viu-se obrigado a pedir o auxílio de Afonso IV através da filha. Esta aceitou vir a Évora, onde a Corte estava instalada, interceder junto do pai, que com alguma relutância decidiu juntar-se ao genro, não sem que tivesse ordenado ao Prior da Ordem do Hospital que levasse o Santo Lenho de Marmelar. Afonso IV dirigiu-se primeiro a Elvas, com o fito de recrutar para as suas fileiras o maior número possível de cavaleiros e peonagem, que entretanto foram aumentando com outras guarnições formadas em diversos troços do percurso.
Daí saiu para se encontrar em Sevilha com o genro. Na cidade andaluza concertaram estratégias e atacaram o poderoso contingente mouro junto à ribeira do Salado, perto de Cádis. Os muçulmanos desorientaram-se e, depois de prolongada peleja, abandonaram a pugna, sofrendo memorável revés e deixando o campo de batalha juncado de mortos e de valiosíssimos despojos. De acordo com os cronistas coevos, o papel da relíquia no ânimo, no espírito e na fé dos combatentes cristãos foi determinante no desfecho da contenda. No regresso a Portugal, como conta Jorge Cardoso no “Agiológico Lusitano”, «levou el-rei gosto que se partisse em duas partes iguais e ficasse uma em Évora e outra na sua Igreja de Vera Cruz».
Contudo, o magnífico relicário que hoje se pode admirar na Catedral só começou a ser composto por ordem do Arcebispo de Évora, Frei Luís da Silva Teles (1691-1703), que a diversas joias recebidas do seu antecessores adicionou centenas de muitas e valiosas gemas (pedras preciosas), num total de 1374, sendo que 845 são diamantes, 105 esmeraldas, 419 rubis, 2 safiras azuis, 2 espinelas vermelhas e uma hessonite. Mas para conhecer com maior detalhe esta maravilhosa peça de ourivesaria barroca portuguesa a “Évora Mosaico aconselha a leitura de “O Santo Lenho da Sé de Évora - Arte, Esplendor e Devoção”, da autoria de Rui Galopim de Carvalho, Artur Goulart de Melo Borges e Gonçalo Vasconcelos e Sousa, em edição luxuosa da Fundação Eugénio d’Almeida.
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